A caça a troféus tem sido o “alvo” das maiores campanhas anti-caça na Europa. O facto de se visarem animais aos quais pode ser atribuída uma classificação e “medalha”, e o custo associado a este tipo de caçadas (os Safaris) têm sido os argumentos que os “antis” habilmente associaram, criando algo que facilmente pelos olhos da sociedade é visto como “imoral”. Infelizmente a maioria não tem ideia do que acontece antes e depois se um caçador “cliente” caçar o seu troféu. É isso que nos conta João Corceiro neste seu artigo de uma caçada a um búfalo em Moçambique.
Um dos melhores momentos de um Safari é quando depois de um bom jantar, nos juntamos à volta da fogueira do acampamento, para beber um copo e falar de caça. Quantas velhas histórias do mato e dos bichos, de cargas de feras e de troféus sonhados, passadas nas savanas, desertos, pântanos, rios, serras e montanhas do Continente Negro, foram e são contadas à volta desta “assembleia de caçadores”!
Naquela noite falávamos do dia que estava a terminar, não tinha sido um dia de caça, mas tinha sido um grande dia. Uma das razões deste Safari era o apoio a causas sociais, do capítulo português do Safari Club International. Nessa manhã tínhamos entregado à população local, a carne do Búfalo que o Guillermo tinha caçado na véspera.
Os benefícios que a caça lhes traz
O SCI é o maior clube de caçadores do mundo e para além de defender os direitos dos caçadores, promove a conservação da vida selvagem. Torna-se extraordinariamente importante envolver as populações locais nessa tarefa, para isso devem ter o retorno daquilo que a vida selvagem cria, só assim compreendem a importância da sua conservação. Os benefícios que a caça lhes traz são o melhor argumento para evitar a caça furtiva, uma das formas é entregar às comunidades locais parte da carne dos animais caçados na sua área, outra, é com o dinheiro gerado pela caça, construir infraestruturas que as apoiem.
O SCI Lusitânia Chapter apoiava vários projetos de conservação de vida selvagem em Portugal, Angola e Moçambique. Um deles envolvia a construção de um posto de saúde para a comunidade local da Coutada 10. Nessa manhã tínhamos ido até às ruinas de um dos acampamentos da antiga Safrique, para falarmos à população sobre essa obra e para lhes entregar carne de caça. Para aquelas gentes foi uma boa notícia e uma grande ajuda, a sua alegria, manifestada de forma tão simples como numa dança tribal ou no sorriso das crianças, também nos tinha deixado felizes. No dia seguinte seria a minha vez de ir até aos pântanos de Marromeu para caçar um Búfalo, por uma boa causa!
O amanhecer é outro momento mágico no mato. Enquanto o manto negro das trevas é trocado pelos rosas, vermelhos e laranjas da alvorada, é altura de beber o meu primeiro café, depois de voltar a atear a fogueira com as brasas que resistiram ao frio da noite. Também é o tempo de escutar o último pio da coruja e o primeiro canto do guarda-rios e das galinhas do mato, de ouvir o último canto dos grilos e a primeira sinfonia das cigarras. As criaturas e os cheiros da noite dão lugar aos bichos e aos odores do dia. A natureza regenera-se e isso faz-me sentir vivo, talvez por isso sou quase sempre o primeiro a acordar num acampamento de caça.
Mas naquela madrugada os meus companheiros também não tardaram a aparecer, tínhamos que ir até ao pântano e queríamos chegar cedo. Teríamos que fazer uma viagem de jipe de cerca de uma hora, até ao acampamento avançado da Marromeu Safaris onde estão os Argos, os veículos anfíbios com que nos deslocaríamos no pântano.
O meu primeiro Búfalo em Marromeu
Quando cacei o meu primeiro Búfalo em Marromeu, dez anos antes, não imaginava que alguma vez na vida fosse encontrar aqueles pântanos quase secos, 2016 ficará na história de Moçambique, África do Sul e Zimbabué, não só como um ano de seca extrema, mas como um dos mais secos dos últimos cem anos. Nalguns parques nacionais destes países foi uma catástrofe ecológica e uma autêntica hecatombe para Búfalos e Hipopótamos. Felizmente as condições naturais em Marromeu são de tal forma favoráveis que a seca não teve essas consequências.
Marromeu já foi o lugar de África com a maior densidade de Búfalos. Hoje está de novo muito próximo dessa realidade, o último censo contabilizou mais de 25.000 Búfalos. Para isso muito contribuíram as quatro coutadas desta área que, após as atrocidades da guerra civil, fizeram o milagre de recuperar uma população de menos de 3.000 Búfalos para as manadas atuais.
O Governo de Moçambique também tem visto a caça sustentada como uma ferramenta de conservação da natureza e uma forma de criar trabalho. A relação com as empresas de Safaris, não sendo perfeita, é muito boa, nomeadamente na atribuição de quotas. Só a Coutada 10 tem cinquenta e cinco Búfalos por época, um caso impar em África, mas quando se tem uma população de mais de 10.000 Búfalos, isso não afeta em nada a conservação da espécie, pelo contrário, cria receitas que também servem para esse fim.
“Nyati”
Chegámos ao acampamento do pântano e trocámos o jipe por dois Argos. O Pedro Vitorino seguia num com um pisteiro, para filmar a caçada, enquanto eu, a Licínia, o Quinton e o Domingos seguíamos no outro. Sem água nem lama deslocávamo-nos bastante depressa e o céu encoberto poupava-nos das inclemências do sol africano, tornando o passeio bastante agradável.
Caçar um Búfalo em Marromeu é uma caçada diferente, por ser nos pântanos. Mais do que seguir um rasto, caça-se à vista. Se ainda estivermos próximos da floresta sobe-se a uma árvore e procuram-se ao longe as manadas ou “rastos no céu”. Os bandos de garças a esvoaçar na linha do horizonte, significam quase sempre uma manada de Búfalos, por vezes com centenas de animais. Meia hora depois, ainda junto à orla da floresta que limita o pântano, o Domingos trepou a uma árvore e perscrutou o horizonte à procura de Búfalos ou dos tais “rastos no céu”, mas sem grandes resultados.
Continuámos a nossa caçada, internando-nos cada vez mais no pântano, ou melhor, numa imensa pastagem verde, com erva e papiros, que se estende por muitos quilómetros até ao mar. Tínhamos pouco mais de uma hora de viagem, e a floresta ainda estava no horizonte à nossa esquerda, quando avistei umas manchas negras próximas dessa linha de árvores, cada vez mais distante. Seguia na parte trás do Argo com o Domingos e mostrei-lhe as tais manchas. Disse-me que provavelmente seriam Sables, mas àquelas formas faltava-lhes qualquer coisa para serem as silhuetas elegantes do antílope mais bonito do mundo.
Fiz sinal ao Quinton, parámos e apontei para as machas, três pares de binóculos e a máquina fotográfica da Licínia haveriam de desvendar o mistério, pensei eu. Mas não foi preciso tanto, um movimento ondulante da mancha negra, muito característico dos Búfalos, fez-me pronunciar a palavra mágica, “Nyati”!
Tinha a certeza, eram três ou quatro Búfalos, a caçada tinha começado…
Caça verdadeira
Caçar Búfalos é uma das minhas grandes paixões, não só pelo perigo e a adrenalina que isso provoca, mas por ser caça verdadeira. Em África diz-se que se caça o Elefante com as pernas e o Leão com o coração. Quanto a mim, quando se caçam Búfalos, com os pés no chão, são necessárias as pernas e o coração. Dos “Cinco Grandes”, na minha opinião, o Búfalo é o mais perigoso para o caçador.
Com mais atenção vimos que eram três Búfalos grandes, provavelmente três machos que se tinham afastado duma manada, três “Dagga Boys”, como são conhecidos noutras partes de África. O vento não podia estar pior, soprava forte de nós para os Búfalos. Embora estivéssemos a mais de dois quilómetros, como estavam muito próximos da floresta, receávamos que entrassem no mato.
Só havia uma solução, deixar ali os Argos, continuarmos a pé paralelos à linha de árvores durante um bom bocado e depois, já mais afastados dos Búfalos e sem que o vento soprasse de nós para os bichos, mudar a direção da nossa caminhada para chegarmos à orla da floresta. Foi isso que fizemos e após três ou quatro quilómetros de uma marcha rápida, ganhámos a posição que pretendíamos.
Desta forma ficámos com o vento a favor e aproveitámos a proteção da mata, para nos mantermos escondidos e fazer o que faltava da aproximação. Agora eramos nós quem tinha todas as vantagens. Tinha passado mais de uma hora desde que tinha visto os Búfalos pela primeira vez, mas continuavam juntos, a cerca de trezentos metros da floresta, mais ou menos no mesmo sítio, a olhar e a cheirar na direção dos Argos, que eram apenas dois pontos pequeninos muito ao longe, no meio de um mar verde.
Bastante mais próximos
Confirmamos que os Búfalos eram machos adultos, um muito velho com os cornos desgastados e com pouca abertura, outro mais jovem com a bossa ainda não completamente formada, e o terceiro era um bom troféu com a bossa sólida, um “drop” razoável, uma abertura bastante boa e pontas muito bonitas reviradas para trás, um Búfalo típico de Marromeu.
Entre nós e os Búfalos tínhamos uma linha de água, bordeada por erva alta e papiros muito densos, que foi uma grande ajuda para avançarmos mais algumas centenas de metros. O vento mantinha-se estável e tínhamos a cobertura dos papiros, já só nos faltava rastejar mais algumas dezenas de metros para poder atirar.
Antes desta última parte da aproximação voltámos a avaliar os Búfalos e após uma pequena “conferência” com o Quinton, não restava qualquer dúvida sobre qual era o troféu mais bonito. O Búfalo mais velho estava deitado e os outros estavam de pé ao lado um do outro, virados cada um para seu lado, com algumas garças a esvoaçarem à volta. Outra imagem espetacular que ficará para sempre nas minhas memórias de caça!
Quando estávamos a menos de setenta metros, levantámo-nos lentamente e apoiei a .375 H&H nas varas. O “meu Búfalo” não podia estar em melhor posição, meio de lado e em afastamento. Coloquei o retículo atrás da mão esquerda e ligeiramente abaixo da linha média do corpo, para que a bala seguisse em direção ao peito, passando pela parte superior do coração. Um “- Behind the shoulder!”, do Quinton, foi a garantia de que a minha opção era boa.
Apertava o gatilho lentamente, à espera que o tiro partisse, quando vi pelo canto do olho que um dos outros Búfalos se tinha começado a mexer e que iria tapar aquele que eu queria. Não perdi mais tempo e a Swift A-frame voou certeira, o que foi confirmado pela reação do animal, que cambaleou em frente quase caindo, e por um “- Good shot!”, do meu companheiro sul-africano.
Os Búfalos saíram a correr, mas o macho a que eu atirei começou logo a ficar para trás, os outros ainda pararam por um instante, mas acharam que era melhor procurar proteção na mata e fugiram. Aproximámo-nos alguns metros e disparei de novo ao Búfalo que já estava caído. O primeiro tiro foi fatal, o segundo foi por segurança, ainda assim foi com cautela que nos aproximamos daquele animal extraordinário e poderoso, que merecia o nosso respeito.