A Primavera é tempo de Corços e Corceiros, entre madrugadas frias e entardeceres cálidos, entre bosques encantados e prados verdejantes, é o tempo certo para procurar os “Duendes do Bosque”!
Texto e fotos: João Corceiro
O caçador de Corços é um privilegiado, por poder caçar em Abril, um dos meses mais bonitos dos nossos montes. A natureza desperta do sono de Inverno, os prados estão mais verdes e aparecem as primeiras flores, as árvores renovam as suas folhas, os dias são maiores e mais quentes, as giestas e as estevas em flor enchem o ar de doces aromas e o Cuco pauta as nossas caminhadas. Se por esta altura caçarmos no território típico dos Corços, as “zonas de mosaico” de lameiros, sementeiras e bosques, estamos no lugar e no tempo certos, num dos paraísos do caçador. Por sorte tenho tido a possibilidade de poder caçar Corços na Galiza e em Trás-os-Montes, neste tipo de cenário, há quase uma década. São duas regiões com muitas parecenças, ou não fossem elas vizinhas, mas onde as coisas são diferentes, no que aos “Duendes do Bosque” diz respeito. Até podiam ser iguais, mas não são, talvez um dia venham a ser, mas não tenho a certeza que isso vá acontecer…
Arranque na Galiza
Mas aquilo de que gosto mesmo de falar é de caça por isso, antes de mais, vou aqui relatar duas caçadas nestas regiões. Este ano comecei por caçar na Galiza, em Saviñao, com o meu amigo Juancho Fernandez e com o Roberto, um guia local. Depois de uma viagem de mais de quatro horas cheguei ao fim da tarde, ainda a tempo de podermos fazer uma saída até ao anoitecer. Este é um bom momento para procurar os Corços nos prados, depois de passarem a maior parte do dia no refúgio dos bosques. O Roberto conhece aquela área como ninguém e já tinha referenciado alguns bons “Duendes”, em meia dúzia de lameiros. Esta região é para mim o sítio mais bonito onde cacei Corços. São muitos os prados, intercalados com bosques de carvalhos, castanheiros, cerejeiras e alguns pinhais e giestais. Mas apesar de termos ido aos locais com mais querença, os Corços desta vez teimavam em não aparecer, apesar do entardecer estar ameno e sem vento, duas condições para que os Corços se movimentem neste período do dia. Ser paciente é uma das características do bom caçador de Corços, ou pelo menos daqueles que temos alguma experiência nestas coisas, e quando faltava menos de uma hora para o escurecer começaram a ver-se Corços, nalguns prados a que espreitámos… Mas ver Corços, não significa ver o “Duende” que queremos ou o que deve ser caçado, mas a presença de fêmeas e machos novos, ainda que por vezes possa ser frustrante, também é a promessa de que se formos persistentes, encontraremos o tal Corço velho com que sonhamos. A persistência é outra das qualidades que o caçador de Corços deve ter… O Roberto sabia de um bom Corço que costumava assomar, quase ao cair da noite, a um de dois prados no meio de carvalhais, na encosta de uma serra. Começámos, pelo prado mais abaixo, mas desistimos rapidamente, quando nos apercebemos que tinha vacas a pastar. Nos sítios onde há gado é quase certo de que não encontraremos Corços. Fomos espreitar o prado mais acima e por pouco não tivemos sorte… vimos o Corço na orla do bosque, onde se meteu rapidamente, talvez porque os cães, que estavam com as vacas no outro lameiro, começaram a ladrar. Ainda o tive apontado, mas só lhe via a mancha branca do rabo, nunca lhe vi a cabeça e resolvi não atirar… Começámos a fazer o caminho de volta à aldeia, parando aqui e ali, para com a ajuda dos binóculos tentar descortinar numa sementeira ou num prado, algum Corço que ainda se deixasse ver, com a luz que já era pouca e diminuía rapidamente…

E aconteceu…
Descobrimos dois machos, já fora de um bosque que bordejava um grande lameiro. Um deles era um grande Corço, com uns cornos altos e bastante simétricos… Aproveitei a linha de árvores para me aproximar, e quando cheguei a menos de cem metros, procurei um bom apoio, apontei e disparei a .243 Win. O Corço acusou o tiro, mas saiu a correr e meteu-se no mato… O Roberto e o Juancho juntaram- -se a mim e começámos a busca. Os meus amigos diziam que o Corço tinha entrado no carvalhal num sítio, eu dizia que era noutro. Procurámos durante alguns minutos e nada, nem sangue nem Corço. Resolvi ir aonde estava o Corço no momento do tiro, que eu tinha referenciado bem, e aí sim, encontrei umas pingas de sangue. Segui o rasto que me levou ao local onde eu dizia que o Corço tinha entrado na floresta e dez metros mais à frente lá estava o meu primeiro “Duende” do ano! No dia seguinte eu e o Roberto começámos a caçar bem cedo, a madrugada estava fria, com alguma geada e neblina nos vales. Nestas circunstâncias os Corços levam mais tempo a sair dos bosques onde se abrigam durante as horas mais gélidas, talvez por isso só começámos a vê-los com a manhã já bem entrada. Tal como na tarde anterior vimos mais de uma dezena, entre fêmeas com crias e machos jovens. Fomos até aos prados onde o meu companheiro tinha visto machos velhos em dias anteriores, mas alguns desses prados tinham sido fertilizados recentemente, sentindo-se ainda o cheiro forte dos adubos, o que fez com que os Corços os abandonassem. As condições do tempo, as atividades agrícolas e o movimento dos bichos, conjuraram- se para que tivéssemos uma manhã interessante, mas sem êxito. A caça dos Capreolus muitas vezes é assim, e ainda bem!
Da parte da tarde
O Juancho voltou a acompanhar- nos, mas desta vez trouxe o Eddie, o seu Baviera, um magnífico cão de rasto, que tem um extraordinário olfato, como já pude comprovar em mais de uma ocasião noutras caçadas. Mas para além disso é muitíssimo obediente, comportando-se muito bem no campo. Se queremos caçar de aproximação com um cão de rasto isto é essencial, ou então o cão estraga mais do que ajuda. A tarde decorreu da mesma forma que nas outras saídas, mas cerca de meia hora antes de escurecer, descobri uma Corça na orla de um giestal. Nestas ocasiões convém procurar bem, porque pode haver um macho por perto e desta vez foi o Roberto que o descobriu, deitado junto a uma giesta. Era um bom Corço, nada de extraordinário, mas cumpria com os meus requisitos… Aproximei-me mais uma vez usando a proteção da orla das giestas, mas a Corça viu-me, empertigou-se de imediato preparando- se para fugir e iria levar o macho com ela, com toda a certeza…não perdi mais tempo, o Corço ainda estava deitado, de frente para mim, apontei à base do pescoço, disparei e o meu segundo “Duende” do ano, ali ficou deitado para sempre. Na madrugada seguinte não estava tanto frio e voltámos ao campo com a primeira luz. Começámos a nossa busca num pinhal, onde nos dias anteriores tínhamos visto duas fêmeas e um macho ainda jovem, mas também muitas marcações numa área em particular. Não é uma certeza, mas arbustos com grandes marcações muitas vezes significam grandes Corços e como o Juancho já ali tinha visto um bom macho resolvemos procurá- lo, mas não demos com ele. Assomámos a mais alguns lameiros e cerca de uma hora depois do sol nascer, descobri um macho muito bom, acompanhado de uma Corça num prado, onde no ano anterior tinha caçado um macho muito bonito. Este não lhe ficava atrás, pelo contrário, era um Corço com um pescoço grosso e aspeto pesado, denotando idade e mesmo ao longe dava para ver que tinha umas rosetas boas… Desta vez aproximei-me aproveitando uma depressão do terreno, na parte mais baixa do prado, entretanto saíram do bosque mais três Corças e outro macho jovem. Ainda estava longe, a cerca de duzentos metros, mas com tantos bichos juntos e sem grande cobertura, tentar aproximar-me mais era correr riscos desnecessários…o macho era mesmo muito bom e resolvi atirar dali. O Corço estava atravessado, apoiei-me bem, ajustei a torre balística para os duzentos metros e com calma apontei ao coração, sustive a respiração e fui apertando o gatilho devagar. O tiro surpreendeu-me, o Corço deu um grande salto e quase que caiu, mas saiu a correr em direção a uma pequena mancha de bosque, onde entrou… Fui procurá-lo, mas desta vez havia um grande rasto de sangue e encontrei-o sem dificuldade. A orix tinha partido o ombro da mão contrária, o que provocou uma hemorragia abundante. Estas balas são muito duras, ideais para caçar dentro do bosque, porque mesmo que batam em folhas ou nalgum ramo não sofrem desvios, mas em animais de pequeno porte, a menos que encontrem ossos grandes, o orifício de saída é pequeno e normalmente não deixam muito sangue. O Corço era exatamente o que tinha visto com os binóculos, um velho “Duende”, com cornos grossos, não muito altos, mas bastante perlados e com umas rosetas muito boas. A caçada por terras galegas estava terminada, despedi-me dos meus amigos, com a promessa de voltar para o ano, àquele que para mim é um verdadeiro paraíso Corceiro e onde sou sempre muito bem recebido!

Trás-os-Montes
Poucos dias depois, no domingo de Páscoa, a seguir ao almoço rumei a Trás-os-Montes. Cheguei a Guribanes, por volta das seis e meia e comecei a minha caçada sozinho, numa área que conheço bem e onde há três anos anda um bom Corço, que nem eu nem o meu grande amigo Paulo Valbom conseguimos caçar, apesar de já termos feito muitas tentativas. O Corço tinha sido visto dois dias antes ao anoitecer, no limite de um olival, no seu território do costume. Fiz uma caminhada ao longo de um trilho, que circunda o olival. As oliveiras estão bastante espaçadas e apesar da erva já estar alta a visibilidade era boa, mas não tive sorte. Faltava menos de uma hora para o pôr do sol e resolvi fazer- -lhe uma espera numa cova, com estevas e carvalhos, onde o Corço também já tinha sido visto várias vezes, mas só apareceu uma raposa que esteve a brincar à minha frente por largos minutos. Na madrugada seguida, na companhia do Paulo, voltei à mesma zona, mas desta vez para caçarmos na margem esquerda do rio Tuela, numa zona de hortas, prados, amendoal e olival, que tem bastantes Corços. Assim que amanheceu começámos a nossa busca, primeiro na proximidade do rio, depois subindo por uma encosta de olival, procurando sempre na encosta oposta cheia de amendoeiras, e nos prados do vale. Cerca de meia hora depois, estávamos a meia ladeira quando, à nossa direita, um Corço ladrou e vimo-lo de imediato a esgueirar-se por entre as oliveiras, sempre a ladrar. Ainda o tive apontado e dava para ver que era um excelente Corço, mas faltaram-me dois ou três segundos para que conseguisse atirar. O Corço dobrou a cumeada e continuou com os seus insultos, fora da nossa vista… A nossa ideia era continuarmos com a mesma tática, para eventualmente mais tarde irmos em busca dele, na encosta para onde tinha fugido. Estávamos quase a chegar ao alto quando, quase em simultâneo, vimos outro Corço à nossa esquerda, no meio do olival. O Paulo abriu o tripé de imediato e eu já estava pronto para atirar, as rotinas que temos, de tanto termos caçado juntos ao longo dos anos, fazem de nós uma equipa afinada… O Corço não era muito alto e o Paulo deu-me conta disso, mas era muito grosso e pareceu-me muito bonito, afastava-se a três quartos e ainda não tinha dado por nós. Apontei ligeiramente à frente da pata esquerda para que a bala atingisse a mão oposta. Disparei, o Corço acusou o tiro e saiu a correr… Fomos procurá-lo e passado alguns minutos o Paulo descobriu algum sangue, seguiu o rasto e encontrou o Corço morto a cerca de cinquenta metros do sítio do tiro. Com o meu amigo Transmontano a “resmungar”, porque a caçada tinha durado pouco, admirámos aquele velho “Duende”, de grandes rosetas e de hastes perladas e grossas, uma delas com muito carácter, tinha uma ponta extra… Durante a tarde fomos até outra zona, de bosque e semeadas, apesar de termos encontrado marcas e rastos de Corços, não conseguimos ver nenhum. Na madrugada seguinte voltámos a Guribanes ao olival onde tinha caçado na primeira tarde, na esperança de vermos o Corço que tentamos caçar há três épocas sem sucesso. Vimos um casal, mas o macho era novo. O “Fantasma” pela enésima vez não deu a cara, mas havemos de caçá-lo um dia…a perseverança é outra das características dos Corceiros. Ainda tínhamos um par de horas e fomos até a uns prados junto ao Tuela. Começávamos a subir por um deles numa encosta, quando um Corço ladrou à nossa direita. Ali estivemos a ouvir os seus impropérios sem nos mexermos, tentando vê-lo a movimentar- -se numa pequena mancha de carvalhos onde estava, ou a atravessar o prado. Passado alguns minutos de silêncio, ouvimos o Corço a ladrar à nossa esquerda, mas não o tínhamos visto cruzar o prado. De repente ouvimos outra vez o Corço a ladrar na mancha de bosque à nossa direita e o outro Corço a ladrar na encosta do outro lado, afinal eram dois… Afastei-me do Paulo para tentar arranjar uma posição de onde conseguisse ver os dois Corços, mas revelou-se uma má opção…ainda vi o Corço da direita junto à cumeada, mas depois desceu e perdi-o de vista. O Paulo, da posição onde estava, acabou por o ver durante largos segundos e teria dado para atirar, eu não o via e por isso escapou… Claro que tive de levar com a “resmunguice” do Transmontano, mas não faz mal…para o ano voltaremos a caçar juntos, seja aos Búfalos em África ou aos Corços em Trás-os-Montes, partilharemos momentos divertidos e caçadas inesquecíveis, numa cumplicidade que só uma grande amizade e a caça nos proporcionam!
Voltando à gestão do Corço em Portugal
Diz a lenda que o imperador romano Caius Júlio César, terá dito nas suas memórias sobre o povo Lusitano, “estranho povo aquele, que não se governa nem se deixa governar”, deixando bem expressa uma das nossas principais características. Não fazemos o que os outros nos dizem, nem sabemos escolher o melhor caminho para nós próprios. Há cerca de trinta anos os caçadores galegos começaram a interessar- se pelo Corço, em Portugal isso só aconteceu muito mais recentemente, devido a uma série de circunstâncias. Os Corços na Galiza são abundantes, em Trás-os-Montes começam a estar presentes em quase todo o território, mas a sua densidade é bem menor. A valorização do Corço por parte dos caçadores e das autoridades galegas, nada tem a ver com aquilo que por cá fazemos.

3 aspetos
Há três aspetos que julgo importantes e que marcam essa diferença. O primeiro é a atitude e a experiência dos caçadores. Em Portugal até há pouco tempo, eram raros os caçadores que sabiam o que era um Corço, ou caçavam de aproximação. As coisas nesse aspeto começam a mudar, mas ainda há um longo caminho a percorrer, os caçadores portugueses têm de ter paciência, não devem ter pressa em “matar” um Corço, não tem de ser numa espera aos Javalis à noite, numa batida às Raposas ou numa montaria. Uma coisa é matar um Corço, outra bem distinta é Caçar um Corço, infelizmente não nos sabemos governar… Isto leva-nos ao segundo aspeto, a posição das nossas autoridades. Matar um Corço à noite é ilegal, mas matar um Corço numa montaria não é. Para mim é incompreensível que na legislação, a caça ao Corço não tenha métodos específicos autorizados e uma época limitada e bem definida, bastava imitar o que de bom se faz noutras partes, mas lá está, não “ouvimos” o que outros nos dizem, infelizmente também não nos deixamos governar… Por fim, o terceiro aspeto, dos mais importantes na Caça e na Conservação, em qualquer parte do mundo, o envolvimento dos caçadores e das populações locais. As zonas de caça locais têm de fazer um esforço para valorizar o Corço, nem todos os caçadores os querem caçar, mas aqueles que querem devem fazê-lo como mandam as regras e pagando uma quota suplementar que beneficie a zona de caça e ajude no repovoamento doutras espécies, mais do agrado dos restantes companheiros. Também é essencial que alguém do grupo faça a monitorização dos Corços ao longo do ano e possa acompanhar, ou pelo menos possa indicar aqueles que caçam Corços, por onde andam os “Duendes do Bosque” e que por isso tenha alguma compensação. Isto, mais do que nada, fará com que se evite o furtivismo, trará benefícios para todos, e muito importante, permitirá que o “Duende do Bosque” seja protegido e prospere. Mudemos algumas mentalidades, saibamos ser caçadores e façamos o que outros fazem bem há muito tempo. Acreditem que é fácil, alguns de nós vamos tentando e até temos tido bons resultados!