“Cães bons são os de antigamente”, dizia-me há uns tempos um velho amigo que recordava uns lances do passado, com uns cães também do passado. “Aqueles cães não precisavam de nada, porque estavam o dia todos soltos pela vila; saías para a caça a andar, bastava uma palavra e lá o cão ou os cães apareciam, muitos sem raça definida. Havia tanta caça que não precisavam de mais nada a não ser caçar, não é como agora”.
Eram melhores aqueles cães? A minha reposta é que não chegam nem às “almofadas” dos nossos cães atuais. A cinofilia no mundo cinegético evoluiu, graças a deus. E em parte, a culpa desta melhoria é precisamente da escassez da caça. O declínio
da perdiz-vermelha e o auge dos caçadores de galinholas são os dois principais motivos para que se procurem melhores
cães que encontrem peças cada vez mais escassas. Quando há abundância qualquer cão encontra, mas é a escassez que
seleciona os melhores “encontradores”. Óbvio, não é? Os criadores fazem uma boa seleção das suas ninhadas, os caçadores estão mais preocupados com os seus cães, as suas origens, raças concretas… O número de sócios dos clubes de raça, por exemplo, subiu muito. O caçador está muito mais informado e formado, ou não? Tirando as origens, a seleção e a melhor genética atual, qual é a diferença dos nossos cães para os do antigamente? O interruptor.
ANTES
Sim amigos, os cães tinham um interruptor que lhes fazia caçar quando o seu dono precisava ou pedia, porque no resto do tempo andavam pela vila ou aldeia, a vaguear ou a roubar os restos de comida que encontravam. Ao chegar o dia de saírem para caçar, e lembrem-se que havia muito mais dias, iam caçar quando alguém precisava de uma lebre, por exemplo. O problema começa quando surgem os calendários venatórios, pois começa a haver restrições de dias de caça, horas, espécies, quantidade a que chamam os cupos, etc. Os cães passaram de estar soltos, a vaguear por onde queriam, a terem de ficar fechados até ao dia da abertura da temporada ou da época estival.
IRONIA
Mesmo assim, o caçador quer filhos desse cão que não aguenta, sem perceber que a mentalidade desse cão é insensata. É difícil aprenderem a caçar para a espingarda, em linguagem de caçador. Aparecem então as coleiras que dão choques para dominar esses cães insensatos, que correm e não aguentam. E já se começa a dominar os cães insensatos e agora todos querem um cão assim e uma coleira de choques. Começam a cruzar os cães insensatos com a cadela que dormita atrás de casa. Não percebem que a genética não é matemática, e apesar de ambos os progenitores poderem passar os genes, às vezes há um que passa mais que outro, e às vezes há só um que passa os genes. Se os cães insensatos tinham uma qualidade, para além dos disparates, era a dureza e a força. E era essa força que lhes dava o interruptor dos seus ancestrais; só tinham que carregar no botão e o cão caçaria durante toda a jornada.
POBRE CAÇADOR ATUAL
Está a ficar confuso; agora que tinha dominado o insensato, aparece uma nova ordem de cães sem interruptor, e não há outro
remédio se não aprender a lidar com estes novos cães. Espera, espera. Novos? Estou a dizer que nunca existiram? Não, não, claro que existiram, os “desajeitados”, mas duravam pouco. Eram outros tempos, tempos onde prevalecia “este cão não presta” ou “desfiz-me do cão”.
PARA OS CÃES SEM INTERRUPTOR
Depois desta viagem histórica em modo irónico e obviamente que em certos aspetos exagerada, quero dar-vos um conselho para os cães sem interruptor. Se tiverem a sorte de ter um cão inteligente, com facilidade de aprendizagem, com bons instintos que se vão desenvolvendo facilmente, mas com sensibilidades altas, ou seja, um animal que não gere bem o castigo
verbal e muito menos o físico, mas que associa tudo aquilo que ensinamos com relativa simplicidade; se têm a sorte de ter um exemplar assim, lembrem-se que vem sem interruptor e que não se podem lembrar que têm cão somente na abertura da temporada. Se fizerem isso, são exemplares que não vão caçar bem, não vão aguentar bem, e vai-se chatear e o cão irá perceber isso e ficará afetado (devido à sua sensibilidade apurada) e na próxima jornada caçará ainda pior, porque associam tudo (e de que maneira)… “Mas se eu não fiz nada ao cão!” Lembram-se daquele artigo que escrevi há algum tempo, que falava dos erros inconscientes? Este é um deles, pois não percebem que fizeram alguma coisa que prejudicou o vosso cão. Não são cães válidos para caçar? São sim, e muito; está provado que os cães com sensibilidades mais apuradas são os mais inteligentes, mas para o bem e para o mal. E por isso são tão fáceis de treinar, mas tão fáceis de “estragar”.