Todos os anos, em Setembro, aproveito meia dúzia de dias para caçar na Brama e na Ronca. Também já é uma tradição familiar, porque a minha mulher acompanha‑me, para fotografar Veados e Gamos, durante este tempo mágico das nossas serranias!
Texto: João Corceiro
Fotos: Autor e Licínia Machado
Este é o mês em que os grandes cervídeos têm o cio e em que a Brama e a Ronca ecoam pelas nossas serras, bosques e várzeas. Para mim é a melhor altura do ano para visitar a parte selvagem do nosso país. Subir a um alto, ainda de noite, escutar a Brama ou a Ronca, ver o nascer do sol e descobrir muitos dos habitantes bravios dos nossos montes, faz‑me
sentir vivo e parte de tudo isto.
Na Serra do Mendro
Desta vez estava sozinho, eram seis e meia, da minha primeira manhã
na Serra do Mendro e tinha oito veados a bramar, nas encostas e vales à minha volta. Com a luz da aurora fui descobrindo um macho após outro e alguns dos haréns que disputavam. Os pombos bravos riscavam o céu nos seus voos a caminho dos restolhos, os chapins e as toutinegras cantavam ao desafio nas azinheiras mais próximas e um bramido mais grave ecoava ao longo de um dos vales, aproximando‑se de um grupo de Cervas que estava junto a uma lagoa. Procurei uma posição melhor para poder ver o Senhor do Monte que reclamava aquele harém. O tal bramido mais grave fazia‑me supor tratar‑se de um Veado mais velho, coisas que os muitos anos no campo nos ensinam… O majestoso macho finalmente deixou‑se ver. Era tudo o que eu imaginava, um Veado velho, corpulento e com uma cabeça que ostentava uma verdadeira coroa real, umas hastes com dezasseis pontas, grossas, longas e escuras, com estoques e contra‑lutadeiras impressionantes, a presa que eu procurava… Uma fêmea começou a subir a encosta e o macho seguiu‑a de imediato, procurei um bom apoio e quando outro macho bramou ao longe, o Senhor do Monte parou por breves instantes. Foi a oportunidade para fazer um tiro certeiro, para o qual tantas vezes treinei, e o Veado caiu morto sem nunca saber que eu ali estava… Depois foi ir até ele, confirmar aquilo que eu já sabia, respeitar e venerar aquele Senhor do Monte que agora era meu, ouvir e ver toda a beleza natural que me rodeava e fazer parte de um processo ancestral a que me orgulho de pertencer.

Memórias
O dia seguinte nasceu cálido e limpo, daqueles tão comuns durante o Estio no Alentejo. Mais uma vez tinha subido à serra ainda de noite, mas já não havia a ânsia de caçar um Veado, depois da caçada generosa do dia anterior. No vale à minha frente a Berreia continuava forte, mas os Veados não se deixavam ver, mantendo‑se encobertos pelas copas das azinheiras, mais preocupados em garantir uma boa sombra para o resto do dia, do que em reclamar novas parceiras. Talvez por tudo isso também eu me desliguei daquele momento, na minha cabeça surgiram memórias dos seis anos em que tinha estado colocado na Base Aérea de Beja. Memórias de descolagens ao romper do dia, de voos rasantes naquela serra, nas planícies a sul e de serpentear o Guadiana a quase mil quilómetros hora. Que saudades daqueles tempos e da sensação de invencibilidade, quase imortalidade, própria de um jovem piloto que achava que conseguia salvar o mundo sozinho… Mas um bramido mais forte trouxe‑me de volta àquela realidade, no fundo do vale três Cervas surgiam no leito seco duma ribeira, seguidas de um belo macho. Pelos binóculos, logo de eram muito abertas, grossas e compridas. Um olhar mais atento revelava doze pontas, as coroas com apenas três, um Veado ainda jovem mas muito promissor. Com mais dois ou três anos, a certeza da felicidade de algum caçador, por enquanto ainda era tempo de o deixar continuar a reclamar direitos de sangue e o seu harém, para que perpetuasse a sua descendência naqueles montes…
Muflões em Setembro
Decidi mudar de área, voltar ao jipe e ir até à Tapada Branca. Cheguei a uma curva num cabeço e tinha à minha frente uma área mais aberta, de outeiros e colinas, com várzeas de pasto no meio de ladeiras de estevas. Saí do carro e escutei, na Brama
caça‑se de ouvido… Um Veado bramava ao longe, outro respondia‑lhe mais perto, ainda assim demasiado afastados de mim para os conseguir ver. Regressava ao jipe, quando outro macho bramou a poucas centenas de metros de onde estava, voltei para trás para o tentar ver. Descobri‑o com facilidade nas estevas da ladeira de uma colina à minha direita, ainda era muito
novo. De repente vi movimento no meio do pasto da várzea mais abaixo, era um Muflão velho, muito escuro, quase negro, que contrastava com o amarelo do restolho de aveia. Estava sozinho num local muito improvável para o encontrar. Em mais de uma década a caçar naquela serra, poucas vezes tinha visto Muflões em Setembro, quanto mais um macho daqueles. Nesta altura do ano costumam preferir o sossego e a frescura dos pinhais ou dos barrancos mais profundos e não se deixam ver. Mas nesta caçada tinha “calhado” com um animal impressionante, com cornos não muito abertos, mas extraordinariamente enrolados, muito grossos e longos, um grande Muflão… A arma tinha ficado no jipe, fui buscá‑la rapidamente e voltei ao
meu “mirador”. Já não o encontrei no mesmo sítio, mas estava na várzea do restolho, quase a entrar nas estevas. Ganhei algumas dezenas de metros, o Muflão continuava a andar e entrou no esteval, ainda o conseguia ver através da mira. Não perdi tempo, o macho afastava‑se a três quartos, apontei e disparei sem perder mais tempo… consegui ver que lhe tinha acertado, mas desapareceu numa depressão do terreno, que não me permitia ver se tinha caído… Fui ao sítio do tiro e encontrei logo muito sangue, o .338 Win. é um calibre extremamente poderoso para animais deste porte, trinta metros mais à frente encontrei‑o morto. Que Muflão magnífico, talvez o Muflão da minha vida, assim do nada, numa manhã lânguida de Setembro que não deixava adivinhar esta dádiva dos deuses da caça!

A Ronca dos Gamos
Os dias foram passando entre alvoradas douradas e entardeceres alaranjados, com a lua cheia a pôr‑se e a nascer sobre a grande planície alentejana. Até que chegou a minha última manhã deste Setembro na serra, apesar de os Veados ainda bramarem, também já havia Gamos a roncar. A Ronca dos Gamos, a que alguns chamam a Brama menor, não sendo tão espetacular como a Berreia, é outro dos momentos especiais dos nossos montes. A Serra do Mendro também é casa destes bonitos cervídeos, para mim o mais bonito de todos, com a sua pelagem amarela torrada e castanha, salpicada de manchas
brancas e os machos com as suas hastes, com pás rebordadas com pequenas pontas. Nos dias anteriores tinha visto alguns, mas nenhum que despertasse muito o meu interesse. Ainda assim resolvi subir à parte mais alta da serra, a um pinhal, onde na tarde anterior vi escapar‑se, fugaz, um Gamo que me tinha parecido bom. Desde o alto apreciei o Sol a ameaçar despontar sobre Moura. O ar continuava morno como nos dias anteriores e comecei a caminhar lentamente pelo pinhal, fazendo pouco ruído e tentando ouvir alguma Ronca ou ver algum Gamo entre os pinheiros. Não tardei muito em ouvir alguns grunhidos fracos, mais abaixo, junto a uma charca que já conhecia doutras caçadas. Fui‑me aproximando lentamente e descobri uma pequena vara de Javalis, três fêmeas com meia dúzia de listados. Mantive‑me escondido a contemplá‑los, de repente ouvi
ruído nas minhas costas, havia outro animal que se aproximava, vinha em busca de água fresca, talvez uma Cerva ou um Gamo… Mas não. Era um Javali encorpado e caminhava direito a onde eu estava, fiquei imóvel e vi que era um macho de pelo
ruço, mas ainda “sem boca”. Chegou a menos de vinte metros e finalmente deu comigo, soprou e fugiu, os outros Javalis na charca também escaparam. Ter sorte duas vezes na mesma caçada, com “alvos de oportunidade”, seria pedir demasiado. Não fazia mal, já me podia dar por muito contente com o Muflão que cacei três dias antes! Retomei o meu passeio pelo pinhal, sem pressa, que a caçada deste ano até já podia estar feita. De repente ouvi dois Gamos roncar e o instinto de caçador voltou
a despertar em mim… Com uma ligeira brisa de frente, fui‑me aproximando e descobri por entre os pinheiros dois machos. Não estavam verdadeiramente a lutar, era mais a ameaça duma escaramuça. Mesmo assim, com os primeiros raios de sol filtrados pelos pinheiros, foi outro momento espetacular, que os amanheceres dourados de Setembro me proporcionaram…
Eram dois Gamos muito parecidos, abertos, altos, com pás bonitas cheias de pequenas pontas ainda intactas, dois bons machos. Um deles era ligeiramente maior, foi esse que escolhi. Preparava‑me para atirar quando se afastaram encosta abaixo e deixei de os ver. Mas não foi uma fuga, tinha a certeza que não tinham dado por mim… Conhecia bem aquele pinhal, por isso sabia que se ganhasse alguma altura e seguisse pela cumeada, talvez os conseguisse ultrapassar para os emboscar mais à frente. Com o vento a favor o plano resultou na perfeição e passado alguns minutos ouvi‑os a caminhar na minha direção. Lá
vinham eles, iriam passar a poucas dezenas de metros de mim, apontei, disparei e o Gamo maior caiu de imediato… Carreguei‑o até um alto, donde se via o Guadiana, tirei algumas fotografias, tentando retratar toda a dignidade de um animal
que foi caçado, enquadrado com a grandeza da serra e a beleza de uma paisagem lindíssima!
Sigo os trilhos
Mas algumas destas manhãs e destas tardes, também foram passados na serra com a Licínia a tirar fotografias aos Veados e
aos Gamos que ali vivem, livres e selvagens, em grande parte porque os caçadores lhes dão o devido valor, os guardam e preservam para todos, mesmo para aqueles que não nos compreendem ou são contra nós. Porque sou caçador sigo os trilhos,
conheço as veredas por onde os bichos caminham e sei as cumeadas e os vales onde ao nascer do dia bramam os Veados e ao entardecer os Gamos roncam…graças àquilo que sei dos nossos montes e dos nossos bichos, e obviamente à sensibilidade e à capacidade extraordinária da Licínia enquanto fotógrafa, também ficaram eternizados muitos momentos das nossas terras bravias, que a maior parte dos portugueses desconhece! Não, ao contrário do que alguns dizem não “mato tudo e não deixo nada”, não “meto chumbo em tudo o que mexe” … outra coisa interessante da “sociedade evoluída” dos nossos dias é que descobriu os produtos biológicos. Há carne mais biológica, que a de um animal que teve uma longa vida livre e selvagem? Creio que não. Essa é outra parte importante de tudo isto, a carne foi toda aproveitada, será comida por mim, pela minha família e dará para almoços e jantares com amigos, que na grande maioria não são caçadores. Agora um novo ciclo começa,
para mim uma longa espera… para o ano lá estarei na Serra do Mendro, na Serra Morena ou na Serra de Montesinho a fazer aquilo que me faz feliz, ao meu ritmo e dos bichos, claro está. Tentarei de novo desvendar os segredos das nossos montes, nos amanheceres dourados de Setembro!
Boas caçadas!
