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Os corços do Norte

by Redação

Todos os anos vou à Galiza e a Trás-os-Montes caçar Corços, uma das minhas caçadas favoritas por ter uma extraordinária riqueza de contornos, seja pelo comportamento dos bichos, tipo de habitat, altura do ano ou condições meteorológicas muito distintas. Tudo isto cria diferentes desafios, que me fazem gostar cada vez mais do “Duende do Bosque” e a definir a minha “temporada Corceira”!

TEXTO E FOTOS: JOÃO CORCEIRO (outubro de 2024)

Começando por aí, infelizmente as coisas vão de mal a pior em Portugal, no que à caça diz respeito. Ao contrário de todos os outros países continuamos a não ter uma época específica para caçar Corços. Também continua a ser possível caçá-los usando todos os métodos, incluindo a montaria, e as autoridades continuam a “fechar os olhos” à utilização de dispositivos, que são proibidos por convenções internacionais, de que Portugal é signatário.

DE QUEM É A CULPA?

A resposta é simples, dos caçadores e das autoridades oficiais que regulam e controlam a caça. Curiosamente não faltam organizações do setor da caça do primeiro, segundo e enésimo nível, as pomposas OSC’s, cheias de tradições sobre a caça maior e de especialistas em Corços. Para as ajudar até já temos uma associação dedicada exclusivamente ao Corço. E o que fizeram?

NADA, ABSOLUTAMENTE NADA!

Esses “especialistas”, pouco ou nada sabem de caça de aproximação e alguns nunca caçaram um Corço. Muitos deles, se os levar ao campo, ao fim de uma hora estão com os “bofes de fora”, sem saberem para que lado está o carro, mas percebem de Corços como ninguém. São excelentes a fazer colóquios e a candidatar-se a projetos, mas não é para promover a caça ou ajudarem na conservação do Corço. É, isso sim, para se promoverem a si próprios e porem três ou quatro moedas, que a tutela vai distribuindo, nos seus bolsos ou de algum cúmplice, um amigo previamente escolhido. Quanto à tutela, nem vale a pena falar. Há muito que sacudiu “a água do capote”, dizendo que deu total autonomia aos caçadores para gerirem a caça como querem. Demitiram-se da sua função de regular e fiscalizar a caça, que isso é tudo uma grande chatice e mais vale andar das “9 às 5” pelos gabinetes e repartições, que o saldo está garantido no fim do mês. Para disfarçarem um bocadinho e calarem os “chico-espertos”, lá vão participando nos colóquios e distribuindo as três ou quatro moedas pelas OSCs e os seus acólitos.

PH’S E MATADORES

Mas a coisa não termina aqui, perante o total vazio das entidades oficiais e a ausência de organizações que ajudem a definir regras e transmitam o sentido da ética na caça, muitos caçadores portugueses resolveram que querem “matar um Corço”, coisa bem distinta de caçar um Corço. Vai daí surgiram alguns afamados PH’s, tipo curandeiro ou endireita da aldeia, que de repente acrescentou ao nome as iniciais “DR” e passou a ser doutor. Primeiro utensílio do dito PH, um monóculo térmico, que os malandros dos Corços não se deixam ver. A seguir, vamos lá despachar isto, que o homem não consegue andar e está cheio de pressa de regressar à cidade. Se fizer sempre assim talvez consiga limpar uma dezena de Corços esta época, a quinhentos “paus” o bicho, já dá uns eurinhos jeitosos, livres de impostos e de contribuições para a Segurança Social, em três ou quatro meses. O Corço acaba por morrer e o “feliz matador” lá volta para casa, todo orgulhoso com o seu troféu e até viu pegadas de Lobos e de Veados onde esses animais nunca andaram. A partir daí nasce um novo especialista em Corços… Haverá exceções a tudo isto, honrosas exceções, gostava que fossem a regra, mas o panorama geral é este. Polémicas à parte vamos ao que interessa, a verdadeira caça aos Corços!

GALIZA

Este ano resolvi tirar cinco dias para caçar e como estava impaciente, nada mais, nada menos que na primeira semana de Abril, no primeiro dia da época de caça aos Corços na Galiza. Caçar no início tem as suas vantagens, mas também podem existir algumas dificuldades, se seria ou não uma boa opção, essa resposta só a teria no final… A minha vida profissional obriga- me a planear as minhas atividades com muita antecedência e não dá para fazer alterações em cima da hora. Foi assim que chegou a data marcada e as previsões meteorológicas não eram nada favoráveis, chuva e vento forte para os primeiros quatro dias, só no final da semana havia uma previsão de ligeira melhoria. A chuva não é um problema, mas o vento forte faz com que os Corços se abriguem e diminui muito as nossas possibilidades de termos sucesso. Cheguei a Ourense a meio da tarde, um sorriso tímido e um encolher de ombros, foi o melhor que consegui do meu amigo Juancho. O cenário não era animador, o céu cor de chumbo e as árvores a abanarem por todo o lado, não prometiam nada de bom, mas nem eu nem ele somos de desistir… Iríamos até Celanova onde eu nunca tinha caçado, uma área próxima de Ourense com muitos Corços, devido às excelentes condições naturais, áreas de mosaico de prados e bosque. A caçada não começou nada bem. Fomos até a um local onde o meu amigo tinha localizado um bom Corço, mas não o vimos. Regressávamos ao jipe quando surpreendemos um casal, junto a uma curva do caminho por onde íamos. Os Corços correram cerca de duzentos metros por uma semeada e pararam…com os binóculos avaliámos o macho. Era um Corço bastante razoável e simétrico, o Juan abriu o tripé, apoiei a carabina, ajustei a torre balística, apontei, disparei e… falhei! Se o mau tempo tornava a caçada mais complicada, desperdiçar oportunidades assim, fazia com que as coisas fossem ainda mais difíceis e desta vez só havia um responsável, eu. Na manhã seguinte choveu intensamente e o vento continuou a soprar forte, já era quase meio dia quando vimos um macho, na entrada de um carvalhal, acompanhado de duas fêmeas. Uma aproximação fácil, um tiro a cerca de oitenta metros e desta vez não falhei. Fomos almoçar já mais animados e o Juancho garantiu-me que na parte da tarde veríamos Corços, confesso que não estava muito convencido disso… Para tornar a história mais curta, basta dizer que a tática do meu amigo foi levar-me a seis prados muito abrigados e que vi Corços em todos, três bastante bons que cacei sem dificuldades de maior, um deles era o mesmo que tinha falhado na tarde anterior. Nunca tinha caçado Corços com um tempo assim, nem conseguido caçar mais de dois no mesmo dia, desta vez tinham sido quatro. Um dia muito diferente daquilo que esperava, a caça às vezes tem agradáveis surpresas… Na manhã seguinte, resolvemos caçar ao longo da orla de um pinhal, com mais de trezentos hectares, situado num planalto e rodeado de prados e várias colinas e vales. A nossa esperança era encontrar Corços nas bordas do bosque, a chuva e o vento continuavam a acompanhar-nos… A nossa caminhada prolongou- -se por quase duas horas, sem qualquer avistamento, até que descobri ao longe, no meio de um prado, um Corço que me pareceu bastante razoável. Pegámos nos binóculos e apesar da distância, dava para perceber que era bastante alto e com pontas compridas. A caça voltava a surpreender-me, ali estava aquele “Duende”, exposto à intempérie, no meio do descampado… A aproximação, foi algo complicada, tínhamos de descer uma encosta e atravessar um regato, para chegarmos à outra vertente onde estava o bicho. Descobrir um sítio para cruzar o ribeiro não foi fácil, a água era muita e corria com força, mas aproveitando umas grandes pedras e com muitas cautelas, lá conseguimos passar para a outra margem. Agora só faltava subir a encosta e esperar que o Corço estivesse no mesmo lugar…e estava! Consegui aproximar-me até pouco mais de cinquenta metros, com o vento forte de frente, seguindo por um caminho encoberto por algumas pedras e giestas. O Corço era aquilo que nos tinha parecido à distância. Um tiro certeiro dava por finalizada esta caçada na Galiza, certamente a mais surpreendente que tive na minha vida, relativamente aos resultados com tempo tão mau.

TRÁS-OS-MONTES

Despedi-me do Juan e lá fui a caminho de Trás-os-Montes, para ir ter com outro amigo, o Paulo Valbom. As terras transmontanas têm horizontes longínquos, um céu imenso e grandes Corços, mas não a mesma densidade da Galíza. As áreas onde caço são mais pequenas, mas isso também faz com que as conheça muito bem… O tempo estava ligeiramente melhor, mas continuava chuvoso e com algum vento. Na primeira tarde cacei com o Paulo, numa zona onde no ano anterior tinha conseguido um macho muito bom, mas não tivemos sorte e não vimos qualquer bicho. Dessa tarde fica a recordação de mais uma brincadeira do meu amigo. Quando ando por sítios onde sei que há Corços, caminho muito devagar, sem fazer barulho e muito atento ao que me rodeia. Na área onde caçamos há um vale bonito e suave, muito querençoso, onde adoto sempre essa tática. O Pa…lhaço resolveu atrasar-se umas dezenas de metros, para me filmar com o telemóvel sem que eu me apercebesse. Depois fartou-se de gozar comigo e mandou o filme para o Pedro Vitorino, a dizer-lhe que eu andava aos Coelhos com uma carabina… No dia seguinte o tempo continuava mau, mas desta vez cacei sozinho e também não vi nada de manhã. Na parte da tarde resolvi fazer uma espera junto a um dos prados do Tuela, mas o resultado foi o mesmo… acreditem que não me aborreci nada com isso, pelo contrário, acho que faz parte do jogo. Alguns caçadores diriam que ali não havia Corços, outros, que também sabem procurar rastos, as marcações dos machos nos arbustos e distinguir os excrementos de um Corço dos de uma cabra, diriam que não tinham visto Corços, o que é outra conversa… Ah, também existem os “matadores” dos térmicos, esses sem dificuldade nenhuma teriam visto vários animais, mas onde é que tinha ficado o encanto da caça e da descoberta dos “Duendes do Bosque”? Mesmo que a utilização desses dispositivos fosse legal, que não é, para mim não haveria ética ou qualquer gozo, se caçasse um bicho de hábitos diurnos dessa forma. Qual é o animal que tem a menor possibilidade de se esconder nestas circunstâncias?… Isso é caçar?!… Para mim não. Voltando aos Corços, só me restava uma manhã e resolvi voltar sozinho, bem cedo, ao vale do primeiro dia, o tal onde eu sei que há Corços, mas onde muitas vezes não consigo ver nenhum. Apesar da brincadeira dos meus amigos, usei a mesma tática de sempre quando ando por ali, o céu desta vez estava quase sem nuvens e adivinhava-se uma manhã mais amena e bem diferente daquelas que tinha tido toda a semana… Meia-hora depois deparei-me com um Corço verdadeiramente excecional, na encosta à minha direita. Nem sequer foi preciso pôr os binóculos à cara, aquele era sem dúvida nenhuma um dos maiores “Duendes” que alguma vez vi. Estava encostado a uma giesta em flor, a mordiscar os rebentos de uma roseira brava e só dei por ele porque mexeu a cabeça enquanto comia. A primeira sensação que tive, foi de que estava a olhar para um veado novo, tal o tamanho das hastes…outro daqueles quadros fantásticos que os nossos montes nos proporcionam! Estava a cerca de cem metros, sem que o bicho tivesse dado por mim. Ajustei o tripé, apoiei a .243 e apontei. Através da mira confirmei aquilo que me tinha parecido a olho nu, era mesmo um grande “Duende”, de cornos perlados, muito longos e grossos. Apesar de estar a três quartos e de costas, não ia esperar mais, era demasiado grande para estar com mais contemplações… disparei e o Corço caiu no sítio! Fui até ele e ali estive a admirar, durante muitos minutos, aquele Corço fantástico, o melhor que alguma vez cacei em Portugal numa área aberta. Depois liguei ao Paulo a contar-lhe o sucedido e desta vez fui eu a gozar com ele, afinal vale a pena “andar aos Corços como quem anda aos coelhos!”

O REGRESSO NO CIO

Mas a minha “temporada Corceira” ainda não tinha acabado e em Julho voltei a Trás-os- Montes para tentar caçar no cio. Normalmente entre os últimos quinze dias de Julho e a primeira semana de Agosto, acontece a muito ansiada “segunda volta” das minhas caçadas aos Corços. É completamente diferente, quase sempre com muito calor, mas em que podemos aproveitar este pequeno período para caçar alguns bons machos, sobretudo em áreas de bosque mais densas onde os “Duendes” têm todas as vantagens durante o resto do ano. Com alguma prática e habilidade, usando um chamariz ou botolo, que imita o assobio de uma fêmea no cio, ou de uma cria perdida, é possível trazer até nós, ou pelo menos para áreas mais limpas, machos e fêmeas que durante o resto do ano, são bem mais discretos e cautelosos. Nem sempre se consegue, é essencial dar atenção ao vento e procurarmos alguma cobertura para nos camuflarmos, mas com paciência, alguma perseverança e sorte, surge a oportunidade. Outras vezes é extraordinariamente simples, sobretudo no pico do cio, é frequente aparecer um Corço saído do nada, a correr à desfilada na nossa direção, um espetáculo digno de ser visto! Na primeira tarde consegui chamar um macho novo, mas ainda não valia a pena. Mudei de lugar e passado algum tempo consegui atrair quatro fêmeas, uma delas até meia dúzia de metros, numa das tais correrias loucas, mas também não era nada daquilo que eu procurava. Na madrugada seguinte voltei ao vale de que muito gosto. Comecei por usar o chamariz junto a um pinhal, mas sem êxito. Um quarto de hora depois, muito perto do local onde tinha caçado o Corço em Abril, vi um macho muito bom junto a uns silvados, na parte mais baixa, onde corre uma ribeira. Fiquei indeciso, entre tentar a aproximação ou chamar o Corço com o butolo. O Corço ia caminhando entre os silvados, ora tapando-se, ora deixando- -se ver, sempre na direção da encosta à minha esquerda, cheia de estevas. Se entrasse no mato, provavelmente ia perdê-lo… Agachei-me e comecei a “chamá- lo”. Apesar de inicialmente parecer algo hesitante, começou a reagir “ao assobio” e a aproximar- se de mim, quando estava a cerca de trinta metros colocou-se na posição perfeita, de flanco. Poisei o chamariz, apontei ao ombro, atirei e o Corço ali ficou… outro grande “Duende Transmontano” que guardarei para sempre na minha memória! Dizem que não devemos voltar ao sítio onde fomos felizes, creio que quem pensa assim não é Corceiro. Em poucos meses fui muito feliz, em duas manhãs inesquecíveis, no mesmo trilho do vale bonito, que vai dar ao Tuela. Por isso, no próximo ano, voltarei a alguns dos mesmos sítios, para caçar de novo os Corços do Norte, assim… como deve ser! Boas caçadas!

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