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É útil a caça seletiva de troféus?

by Redação

Uma das ideias enraizadas no conhecimento popular dos caçadores é que a qualidade dos troféus pode-se melhorar à base de impedir, mediante a caça, que os exemplares de pior qualidade acedam à reprodução. É isso a que comumente chamamos “caça seletiva”. Será mesmo assim?

Atualmente há uma série de estudos realizados com o acompanhamento de populações de espécies cinegéticas de caça
maior que podem dar-nos informação cientificamente comprovada. Mas vamos ao início da origem na Península Ibérica do
melhoramento da qualidade de troféus pela seleção (caça) dos piores exemplares. Já em 1978, o livro “La caza selectiva del venado”, da autoria do Marquês de La Bañeza (Fernando Mesía y Figueroa), evocava as vantagens da seleção pela qualidade das hastes como ferramenta de gestão em populações cujo objetivo era a obtenção de grandes troféus. Em Espanha existem várias publicações alusivas a este tema, pois as áreas de caça vocacionadas para a caça de exemplares “medalháveis” tem
várias décadas. O mesmo não se passa em Portugal, por motivos óbvios, pois o veado esteve confinado durante várias décadas a pequenos redutos com uma exploração muito própria e exclusiva, faltando a “caça” e caçadores “especialistas”, podemos assim dizer, nesta e noutras espécies de caça maior. Regressando às publicações em língua castelhana, do país nosso vizinho, encontramos ainda outro livro fundamentado em anos de experiência e análise de vários desmogues e troféus de veado; “El venado y su selección” (de Juan Caballero de la Calle). Ambos os livros foram verdadeiros manuais de referência para os proprietários de “ fincas” de caça que se tornaram emblemáticas (na sua maioria cercadas) e ajudaram a entender melhor o mundo dos cervídeos. Hoje o veado está presente num vasto território, através da expansão natural de exemplares que escaparam de propriedades cercadas, de redutos onde sempre existiu em estado selvagem e inclusive fruto de reintroduções (como é o caso, em Portugal, da Serra da Lousã). Por isso, com uma diferença significativa entre este tipo de populações, será lógica a questão; é possível “melhorar” a qualidade dos troféus de veado à base da extração de exemplares “seletivos”? Ou pelo contrário, em alguns casos estamos apenas a perder tempo nesse tipo de ações?

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O que se procura através da caça seletiva de troféus (definida no conceito ibérico) é impedir, à base da extração de exemplares, que os animais com hastes de pior qualidade consigam reproduzir-se, ou seja, passarem os seus genes à geração seguinte de uma determinada população. Com esta medida, procura-se uma melhoria dos troféus possíveis de caçar no futuro. Em primeiro lugar, há que assinalar que o melhoramento genético de uma população apenas é possível em condições plenamente controláveis. Por exemplo, é o que vem fazendo a conhecida “Finca Lagunes” desde finais da década de 1980 com reprodutores de veado-ibérico (Cervus elaphus hispanicus), conseguindo a criação de linhagem de grandes troféus. Nessas condições específicas torna-se possível decidir que machos cobrem as fêmeas e controlar todo o acervo genético dos futuros veados e, muito importante, sempre com uma componente de alimentação também controlada. Depois, outra consideração importante é o facto de habitualmente depararmo-nos com as “razões” indicadas pelos proprietários de zonas de caça que contam com a presença de veados, enumerando como causas da falta de qualidade dos troféus a “consanguinidade” a “má genética” dos seus veados. Curiosamente, nunca está em causa a (má) gestão da zona de caça, que no caso das áreas cercadas têm habitualmente populações muito acima da capacidade de carga, portanto, sobrepopulação de animais, seja de veado ou outras espécies cinegéticas de caça maior que partilham o mesmo habitat.

UM ESTUDO
Vamos então passar a dados e ao que a ciência nos diz sobre se é possível em condições normais de gestão de uma zona de caça, obter uma melhoria dos troféus utilizando apenas a caça seletiva. A caça dirigida apenas a um único fenótipo de uma população, ou seja, considerando determinados caracteres dentro do campo da hereditariedade, pode mudar essa população; esse é um dado que se conhece há várias décadas nos Estados Unidos da América. Durante muitos anos, a caça ao carneiro-das-Rochosas (Ovis canadensis) obrigava a selecionar (como troféu de caça) apenas os exemplares que tivessem os seus cornos com uma curvatura completa (full-curl horn), não se tomando em consideração a idade do animal. Esta ação, que esteve em prática durante 39 anos, levou à modificação dos genes das populações deste carneiro selvagem, pois eliminava exemplares com menor idade, mas que chegavam a ter essas características de troféu (estudo “Intensive selective hunting
leads to artificial evolution in horn size”, Pigeon, G., Festa-Bianchet, M., Coltam, D.W. and Pelletier, F. – 2016). Pouco a pouco, apenas acediam à reprodução os machos com um desenvolvimento de cornamenta em longitude mais lenta e que não chegavam a “fechar” a curvatura, de modo que cada vez se tornava mais difícil encontrar carneiros com “troféu legal”
(eram mesmo os únicos exemplares que se podiam caçar) e apenas os exemplares de “troféu ilegal” se reproduziam. O problema com os nossos veados é que os critérios de seleção são mais complexos do que o comprimento do troféu e isso dificulta consideravelmente essa seleção.

OUTROS EXEMPLOS
Ainda nos E.U.A., encontramos três estudos sobre o veado-de-cauda-branca (Odocoileus virginia-nus) realizados de modo a conseguir uma melhoria da qualidade dos troféus. O primeiro caso, realizado pelo Instituto de Investigação da Fauna de Caesar Kleberg, realizou o acompanhamento entre 2006 e 2015 do Rancho Comanche, uma propriedade de caça. Foram capturados e posteriormente libertados 3.332 veados, dos quais foram caçados durante esses anos 1.296 exemplares.,
em três áreas cercadas: uma com 1.146 ha com caça seletiva aos piores troféus; outra com 7.284 ha, com caça seletiva moderada (apenas alguns exemplares de troféu muito pobre eram eliminados); e outra com 2.023 ha, sem caça seletiva, onde os troféus se foram desenvolvendo naturalmente e apenas de caçavam os exemplares que estavam nos critérios de “bons troféus” (iguais em todas as áreas). Convém referir que todas as áreas tinham a mesma densidade de animais, tendo em conta o tipo e qualidade de habitat. Na prática, com situações que poderiam ser replicadas em qualquer zona de caça (cercada, neste caso) na Península Ibérica. Apesar da diferente gestão, ao fim de sete ano não se notou qualquer tipo de diferença na qualidade de troféus das três zonas de caça. Em todas se cobraram troféus de elevada pontuação. Um segundo estudo que podemos trazer ao nosso artigo foi realizado no Rancho Faith, onde se caçou em duas áreas cercadas, cada uma delas com 450 hectares. Na primeira incluíram-se dois cercados com cerca de dois hectares onde se colocaram exemplares de genética exclusiva (machos e fêmeas) e vocacionada para o desenvolvimento de troféus excecionais. Todos os veados existentes nessa área foram erradicados e deu-se início ao repovoamento com exemplares nascidos nesses cercados de criação. A segunda área também foi limpa” dos exemplares existentes e introduziram-se veados capturados em propriedades vizinhas, e por isso com a mesma genética. Ao longo dos anos foi feita uma gestão por meio de caça idêntica em ambas as áreas (de 450 ha) e com resultados idênticos no que diz respeito à qualidade dos troféus. Como terceiro exemplo, temos o estudo também realizado por investigadores do mesmo Instituto iniciado na década de 1990. No Rancho King, propriedade cercada com 4.000 ha, realizou-se um programa de gestão retirando todos os machos com critérios seletivos de primeira cabeça e segunda cabeça em função das pontas e qualidade das hastes. Numa propriedade vizinha, com a mesma área, tipo de habitat e densidade de animais, foi realizada uma gestão aleatória de machos de modo a manter a população num número aceitável
para a capacidade de carga dessa área. Ao fim de oito anos, a qualidade dos machos extraídos em ambas as áreas eram idênticas, mesmo em animais de diferentes estágios etários.

RELAÇÃO DENSIDADE/ALIMENTO OU GENÉTICA?
Os estudos concluíram que a caça seletiva apenas pode ter efeitos com grande esforço e depois de anos de trabalho em situações muito concretas. Em primeiro lugar, concluiu-se que não podemos controlar a qualidade genética associada a fêmeas porque estas não têm hastes que nos permitam saber que tipo de genes passam aos seus descendentes. Em segundo
lugar, um vareto de hastes curtas pode dar um grande veado ao fim de dois anos, pois há outros fatores que influenciam o crescimento, como o estado sanitário e a alimentação. As conclusões apontam para um trabalho mais centrado na melhoria
da componente alimentar e controlo de densidades, ou mediante a suplementação de alimento de qualidade. Essa será a forma mais rápida de obter resultados. O melhoramento da relação densidade/alimento apresenta vantagem em relação
à introdução de exemplares de genética apurada, foi essa a conclusão dos estudos norte-americanos, pois foram os habitats a
definir a qualidade dos troféus e não os critérios de caça seletiva ou introdução de veados geneticamente “apurados”. O tamanho das hastes dos varetos é fortemente influenciado pela disponibilidade alimentar e estado sanitário dos animais.

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