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O cão estúpido

by Jesus Barroso de la Iglesia

Há um ditado popular, creio que é anónimo (se não o for, o autor que me desculpe), que diz: “A ciência deveria preocupar-se por investigar a estupidez humana em vez da inteligência animal”.

N o meu livro “O caçador de estímulos” falo acerca de uma situação da minha filha mais nova com um amigo caçador que estava a ajudar com um pointer. O homem estava desesperado porque o cão não lhe ligava nenhuma, não respondia quando ele estava à espera depois de umas sessões de treino, e disse em voz alta “este cão é idiota”. Então, a minha filha tirou-lhe a trela da sua mão e disse-lhe “deixas-me?” Ela foi com o cão e começou a brincar com ele durante uns minutos e depois começou a dar-lhe ordens, às quais o cão respondia perfeitamente. Voltava a brincar com ele e intercalava as ordens com a brincadeira, e o cão respondia bem. A minha filha regressou e deu-lhe a trela (ao dono do cão) e disse: “o idiota não é o cão”.

EXISTEM CÃES ESTÚPIDOS?
Em primeiro lugar, vou explicar o que quero dizer quando estou a chamar estúpido, idiota ou tonto a um cão. A maioria das pessoas chama o seu cão de tonto, como no caso que acabei de vos contar, quando não são capazes de lhe ensinar e quando o cão não faz nada do que se pede. Nada mais longe da realidade; neste caso, o estúpido foi o dono, que não percebe nada das sensibilidades do seu cão nem das motivações pelas quais se podem baixar as sensibilidades para que este responda melhor, mas também essas motivações podem levar – e normalmente levam – à desobediência. É o famoso recipiente de “vasos” comunicantes de Konrad Lorenz, onde a água que enche o recipiente é descrita como sendo as motivações.

QUE É QUE PRECISO PARA QUE O MEU CÃO ME OBEDEÇA?
Equilíbrio. Se tiver sede e encher demasiado um copo, vai certamente entornar água enquanto mexe nele. Se encher com pouca água não irá transbordar, mas não irá “matar” a sua sede. Encha-o de forma que não derrame água e, simultaneamente, sacie a sua sede; e a isso chamaríamos de equilíbrio. Com as motivações, as sensibilidades e as pressões que exercemos ao treinar o nosso cão, acontece exatamente o mesmo (quando comparado com o transporte do copo de água quando tenho sede).

Há que ter em conta como é que o cão aceita a pressão a que é submetido, já que um simples puxão na trela pode acabar com um exemplar que nunca tinha posto uma trela e que tem sensibilidades físicas altas. Primeiro temos de habituá-lo à trela, positivando este novo elemento. Como? Associando com algo bom para ele (comida, brincadeira, saídas à caça…) e evitando puxões e ordens, ou seja, equilibrando as sensibilidades com as motivações. Pode acontecer o contrário, ele não querer saber da trela e, com motivações associadas à caça, ele se “estrangule”, se “afogue”, mas ainda assim não há forma de obedecer. Aqui obviamente que também não há o equilíbrio desejado e a culpa não seria de novo do cão, mas sim nossa, porque não soubemos ler as suas sensibilidades e aumentar a pressão ou baixar as motivações presentes, sejam de caça ou daquilo que for, mas que impedem que ele se centre no exercício. Equilíbrio.

ENTÃO, HÁ CÃES TONTOS OU NÃO?
Agora vamos supor que já equilibramos os instintos, motivações, sensibilidades e pressão. O cão não dá sinais de calma, aceita o trabalho honesta e alegremente. Mas começamos logo a trabalhar no dia seguinte e então sim, começam a aparecer os sinais de calma. Não se esqueçam que este tipo de sinais são a forma de comunicação gestual do cão, para nos dizer que estamos a “passar-nos”, que tem medo ou que não quer continuar a fazer o que estamos a fazer, que estamos a ser demasiado exigentes. Por exemplo, hoje o cão parece que não tem nariz, não encontra peça de caça nenhuma. Mas se olhar com atenção, consigo identificar uma conduta de deslocação, ou seja, o cão está a evitar encontrar, porque ele não o quer fazer. Mas porquê? Isto normalmente acontecer quando no dia anterior ele trabalhou o respeito na paragem ou ao voo, com métodos coerentes, e isto já me aconteceu. O cão ontem deveria ter dado sinais disso, mas mostrou-se alegre e afável, não há
dúvidas. Este exemplar está tonto, tem um desequilíbrio mental.

ÀS VEZES SIM, EXISTEM
Há pouco tempo publiquei um vídeo no Youtube de uma drahtaar que, sem ter tido alguma experiência negativa com a caça, tinha pânico ao cheiro da codorniz e até não a ver apeada diante dela não entrava em modo de caça. Essa cadela estava desequilibrada, quer por uma má socialização, quer por alguma tara genética. Não podemos negar que há cães que não associam como a maioria ou que têm medos intrínsecos inexplicáveis. Obviamente, os criadores têm muita culpa nisso, porque criar não é como fazer bolachas, que com um molde saem todas perfeitas. A genética é uma ciência complexa e estamos ainda a anos de luz de compreender realmente como funciona o cérebro de um cão. Até então, continuamos a acreditar que os idiotas e estúpidos são os cães e não nós próprios, apesar de neste artigo vos ter dado uma réstia de esperança: às vezes o estúpido pode ser o cão, sim.

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